O SOL NEGRO
Do Livro de Contos “O Prédio” – 2002
Josette Lassance

Da janela morta a borboleta sai, ilesa, vestida com sua asa de pérola, ganha o imenso céu. Ela ficou escondida no quarto, entre suas paredes vivas que pareciam a engolir - um branco nostálgico quase prata era tomado pela grafite rude onde escrevera palavras quando embebida de sua solidão quase num ato único - correspondiam seus gritos: rabiscos, arabescos úmidos de idéias - cofres perpétuos de insanidades...

Seu cérebro carregava um par de lentes grossas de alumínio fosco: um par de óculos míopes. O que fazia ali era puro desejo, de sentir através das palavras, que acabavam arrancando os sentidos mais íntimos de suas necessidades existenciais.

Acordava e um pássaro pousara nu quase olhando para ela de um fio de rua - suas janelas por descuido ficaram abertas, mas quase sempre mortas para a rua, introspectivamente vomitava sua ira pela luz do sol. O pássaro ficou minutos e ensaiou uma canção rouca de alvorada – ela acordou e quase imperceptível mostrou-se num olho descoberto pelo lençol – dormia nua e quase todas as vezes sua nudez contrastava com sua desordem: um quarto sem início e fim – onde amontoados livros faziam perceber-se como um labirinto em que se perdia quase sempre nas tardes em que lia infinitamente Rimbaud em suas páginas seculares, palavras eternas, amareladas pelo pôr-do-sol.

Um negro saco de dormir cobria sua cama de solteiro e sua pele branca contradizia um sol negro desenhado na parede direita, parecia querer saltar os olhos e os restos de seus cigarros sujavam o chão de taco marrom.

Onde estaria ela, se a cada instante era um gomo de personalidade? Incógnita esfinge revestida de acaso.

Talvez fizesse diferença conhecer alguém que a fizesse amar tão forte ao ponto de não suportar-se liberar suas emoções mais intensas – como a de desfazer-se de um sol negro que a encobria e descobrir-se em sua alma o que pudesse vir a ser um sol de verdade, sem o escuro proposital de um corpo de quarto forjando arbitrariamente uma luz, invertendo seu sentido anti-horário do dia.

O dia grafitado energicamente na penumbra de seus pensamentos... O tempo ali pesado tomando eletro choques e vomitando parágrafos pervertidos cheios de cólera pelo mundo.

Não queria encontrar nada evidente, por isso, esgotava-se nas sensações de pertencer-se primitivamente à sua selvageria. E quando bebia muita cerveja nos bares que freqüentava, quase sempre fazia parecer-se a um porco, com seus cabelos negros descuidados, sujos de gordura soprada pelos ventiladores de teto e enfiava-se num vaso sanitário para vomitar toda a sua vontade de beber, um retorno onírico de desesperanças.

Depois ia para casa fatigada, exausta de ter perdido tantas chances... Como se deixasse de viver por isso.

Deixava-se caminhar com amigos durante as noites mais chuvosas – como a descer a ladeira do Bolonha como se fosse seu desfiladeiro. Lá, poderia sumir de tudo e ser tomada pelo escuro ou multiplicar-se as mil luzes artificiais das ruas inanimadas, como se fossem as casas mais vazias do mundo. Havia um silêncio de sábado, de sinagoga – e uníssono era o som de uma música ferida saindo da boca de um instrumento metálico: agudo/grave/seis pernas marcavam os sólidos paralelepípedos. Sangravam seus sapatos pesados nas veias do chão.

E os momentos todos passaram e o passado não servia.

E todas as formas foram mudando de lugar, a cada dia, a cada banho, a cada beijo...

Via-se apaixonada e os garotos cabeludos foram crescendo e o olhar para trás fora diminuindo de tamanho e sua importância já não era mais a mesma.

A borboleta saíra pela janela morta e sozinha entrou no planeta que escolheu desfrutar suas loucuras preferidas.




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