a morte das máquinas



Zulma noite e dia tece. Corta. Grampeia. Estica. Passa. Um alvoroço. No quintal sua cadela prenhe anda de um lado para o outro, imprensada entre o muro e a parede da cozinha. Zulma é mistura. Italiano. Negro e índio. Zulma tem 73 anos. Operou de catarata faz seis meses. Conta cada história! Que um dia viajou e foi entregue por sua mãe para seu padrinho porque a mãe não podia sustentá-la.  (pelo que me pareceu ela não teve afagos). Então aprendeu a costurar e a cozinhar. Cozinha como ninguém. Costura além de suas possibilidades. Mas cria muito bem várias calcinhas com bichinhos para vender. Seu filho único, 49 anos, sempre usa cuecas de bichinhos.

Ela faz costura de rede, meia, vestido, calça comprida, pijama. Um dia, daqueles inspiradores dias, fez um pijama para uma mocinha e se inspirou tanto que a mocinha passou a usar para ir para a faculdade. Uma daquelas calças compridas frouxas quadriculadas vermelhas que dá uma vontade de não tirar do corpo de tão macia que é. 

Então: O médico diz a ela que ela não pode mais costurar, nem lavar, nem passar, nem cozinhar. O médico quer que ela morra (de tédio talvez). Porque ela tem tal nódulo na aorta que a incomoda com uma dor nas costas. Ela pede então socorro ao filho que mora com ela e que por isso também fica envolvida em suas tramas em histórias imaginárias e reais.

Quando vou lá almoçar em algum domingo (esparsamente vou). Ela me enche de mimos e de comida boa. Eu entro nesse espaço de suas criações. Às vezes adormeço ouvindo tantos causos. (ou pela comida que é um embalo para o sono em dias quentes).

Um dia desses ela me disse que havia uma casa onde ela morou durante três meses e que a casa era mal assombrada. Atiravam pedras durante a noite e que havia uma senhora vizinha que conversava com uma árvore de tamarindo.

Vocês sabem o que é tamarindo? Aqui no norte chamam de “tamarino”, mas o nome certo, segundo a Wikipédia é tamarindo:  Tamarindo vem do árabe – em português tâmara da Índia) através do latim medieval tamarindos. Mas parece que tem suas origens nas savanas africanas, embora seja cultivado na Índia. No Brasil é bastante consumido no norte e no nordeste. As folhas são compostas e sensíveis (fecham por ação do frio), flores hermafroditas amarelas ou levemente avermelhadas (com estrias rosadas ou roxas) que se reúnem em pequenos cachos.


Talvez por isso essa senhora vizinha dessa casa onde Zulma morou pense que a árvore é seu pai, de tanta sensibilidade que tem a árvore com a possibilidade de tecer diálogos frequentes (a solidão faz tecer raízes verdadeiras entre pessoas, animais e plantas).
Zulma passou então apenas três meses na casa,  porque mesmo não se mora mais do que isso numa casa mal assombrada. Então de mala e cuia se despediram da casa com um olhar machucado, vendo de longe a vizinha amalucada conversando com seu “pai”.

Zulma prepara agora uma colcha de retalhos. Ela coleta pedaços de cada roupa costurada e faz um grande amontoado de tecidos coloridos. Aposentada. Jamais vai desligar suas máquinas porque acredita que a verdadeira natureza da morte esteja em deixar o que faz com amor para entrar em estado vegetativo.

Zulma continua fiando. Tecendo. Cozinhando. Até hoje. Até agora.

Josette lassance
23/08/2013






Postagens mais visitadas