MATINTA PERERA

(texto extraído do Livro Crônicas, sonhos & cafés, Josette Lassance,  Ed. Cromos, 2011) 

Alguém roía uma fruta embaixo de uma árvore. Um galpão coberto de zinco e um terreno baldio logo ao lado acinzentavam esse pedaço de paisagem. Dentro do galpão alguns homens descansavam em cima de jornais, no terreno baldio algumas ameixeiras mexiam suas folhas, era quase uma hora da tarde, o sol rachava a terra, algumas bicicletas passavam e levantavam a poeira da rua.

Na esquina um posto de gasolina enferrujado enchia os tanques dos caminhões com a carroceria carregada de mercadorias; melado, carne de porco salgada, café, tabaco. Dois homens na boleia que acompanhavam o motorista tinham músculos de pedra.

De alguns quintais ouviam-se algazarras de meninos jogando bola ou gritando com um pedaço de pau para quem conseguiria levantar mais alto e arrematar uma manga verde. As sombras espalhavam-se até as cercas onde as roupas secavam.

Nenhum ruído sórdido, apenas de vida passando devagar nos terrenos soltos, onde as galinhas ciscavam insetos para seus filhotes e peruas velhas chocavam seus ovos em ninhos de paneiros.

De repente, uma mulher velha saiu pela porta de sua casa e caminhou ate a rua, olhou para os dois lados e seguiu numa única direção. Ninguém percebeu sua presença. Silenciosamente arrastava seus tamancos enquanto seu vestido de flores voava mostrando as anáguas brancas; era uma mulherzinha magra, veias e ossos, pequena e pescoço curvado para o chão, os braços compridos e um semblante puxado, um par de alianças no dedo esquerdo, caminhava e caminhava. Olhava para trás observando se não estava sendo seguida.

O homem do posto sentou-se numa poltrona velha de Kombi próxima a calçada. Todos estavam distraídos. Não havia testemunhas. A mulher velha penetrou num caminho escuro onde árvores cresciam tortas e enegreciam-se.    Seus cabelos grossos caíam até as suas últimas vértebras, embranquecidos e cheio de sebo. Pronunciou algumas palavras e em seguida apareceu uma fonte de água pura. Logo acima, uma luz como um lampião a gás caiu em sua direção. Uma chama densa em forma de cone fixou-se intensamente na bruma de carne que aparecia. A mulher despiu-se e entrou na água. As rugas instantaneamente sumiram e uma nova pele surgia dentro da pele velha, como uma cobra; a mulher rigidamente olhava para seus reflexos, branca, magra, com seus pelos negros reluzindo.

Em seu dialeto repetiu as palavras, então um homem ruivo de cabelos ralos e barba comprida aproximou-se da fonte. Em sua orelha uma argola de prata refletia suas patas traseiras, metade homem, metade animal, sujo de muco das plantas apodrecidas, fétido de suores, lambeu-lhe os seios, depois o corpo e copulou até a morte.

A mulher levantou-se e banhou-se. O sêmen espalhou-se. Vestiu-se do mesmo vestido de flores e caminhou até o portal.

A pele voltou a enrugar-se, as veias azuis retornaram às suas mãos. Caminhou lentamente de volta pela noite seca.

A mulher atravessou o luar do pequeno vilarejo. Deu um grande sorriso de quem desconhece a rotina do lugar, salvo o latido dos cães alvoroçados pela súbita ventania. Abriu a porta de sua choupana e entrou.

O vento seco da noite penetrou em cada jardim, onde as libélulas voavam silenciosas.

Um aroma de flores noturnas misturou-se a um frisson de escárnio entre ruídos baldios de veneno. Com as sopas servidas nas mesas das casas a aldeia jantava. Nenhuma palavra surgiu, nenhum som ou algo que pudesse quebrar a rotina misteriosa de uma metamorfose. A madrugada cobriu a lua.









[1] Personagem do folclore da região norte do Brasil. Fonte: Wikipédia

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